Registro não tinha. Identidade, pra quê?
Filho da nação, homem do povo,
Cria da miséria, prole da fome,
Pela matina levantava, punha-se cedo a trabalhar,
Quando menos se esperava, lá vinha João
Sorriso na boca, enxada na mão,
Cantarolava baixinho e a São Pedro rogava,
Caridoso santinho, poupa-me dessa vida desgraçada,
Pela noite, João se recolhia,
No casebre apertado, dormitava, sem jamais descansar,
E no dia seguinte, levantava mais uma vez João,
Sorriso na boca, enxada na mão,
O sol fustigava sua face abatida,
João, meio tonto, sentou-se para repousar,
Acordou, atônito, com o cenário à sua frente,
São Pedro sorria, e lhe disse zombeteiro,
João, levanta-te daí, o céu hoje está em festa,
Ganhamos um novo membro e tu ganhaste um sobrenome,
Qual? - João pergunta, ansioso,
Ninguém - responde-lhe, prontamente, São Pedro, amistoso,
Esse foi um breve relato de mais um João Ninguém,
Pobre, carente, desafortunado,
Morreu, sem ter nenhum vintém,
Amanhã a história se repete com algum outro João,
Marginalizado pela sociedade, de enxada na mão,
Porque, afinal de contas, João tem muitos irmãos,
Todos escravos da fome, crias da miséria, homens do povo,
A pátria é João.
"As alpercatas dele estavam gastas nos saltos, e a embira tinha-lhe aberto entre os dedos rachaduras muito dolorosas. Os calcanhares, duros como cascos, gretavam-se e sangravam. Num cotovelo do caminho avistou um canto de cerca, encheu-o a esperança de achar comida, sentiu desejo de cantar. A voz saiu-lhe rouca, medonha. Calou-se para não estragar força."
(Vidas Secas- Graciliano Ramos)