Quem sou eu?

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Recife, Pernambuco
Poderia dizer que vivo de sonhos, mas creio que são eles que vivem em mim. Arriscaria classificar-me como quixotesca, a cada dia mato meus gigantes para, na manhã seguinte, aperceber-me de que eles não passavam de meros moinhos. Acredito firmemente que as melhores pessoas tem um quê de loucura, manter-se fixo na realidade é enfadonho. O ideal mesmo é tirar os pés do chão e, se possível, aprender a voar.

quinta-feira, 10 de agosto de 2023

Jogo de poder

Entro em seus aposentos imperiosamente, como se fosse minha e não dele aquela enorme cama no centro do quarto, com um dossel majestoso que vai até o teto, quase tocando o incrível vitral transparente de onde é possível ver as estrelas, que brilham para mim, como se compartilhássemos um segredo. Pisco efusivamente tentando acostumar meus olhos à penumbra e não estou sozinha, mas já ansiava por isso, foi precisamente por esse motivo que andei até aqui, na calada da noite. Precisava vê-lo rastejar a meus pés depois do que fez comigo, sentir sua subjugação, sua impotência. Despi-lo daquele terrível sorriso arrogante que ostenta em seu rosto com tanto orgulho. Com esse pensamento em mente, me aproximo silenciosamente do seu leito e toco-lhe a face desenhando os traços suaves que por tanto tempo odiei profundamente, por desejá-los com tamanha intensidade. Ele está de olhos fechados, mas sei que não dorme, sua respiração está um pouco ofegante e entrecortada.
Ele sabe - penso eu - sabe que sua rainha desceu de seus aposentos para vê-lo, e está se deliciando com isso.
_ Olá querida, veio me procurar? - disse ele, ainda de olhos fechados, apenas movendo aqueles lábios terrivelmente macios num sussurro arrogante.
_ Se eu fosse você não estaria tão feliz com isso - retruco, afiada como uma lasca de gelo - afinal, até o fim dessa noite, será você que estará implorando para eu não deixar esse quarto.
Ele encara minha face, como se estivesse pensando na ousadia da minha declaração, sua íris se alarga perigosamente, escurecendo completamente os olhos castanhos, cheios de desejo latente.
_ Posso perguntar o que a faz ter tanta certeza? Sou seu súdito, mas não preciso me subjugar a isso se não for da minha vontade.
_ Você tem razão, é evidente que não precisa, mas está claro que quer tanto quanto eu.
Ele não nega essa afirmação. Não pode. Me aproximo perigosamente, como uma gata à espreita de sua presa. Posso sentir a tensão palpável aumentando entre nós dois. O ar está ficando denso e carregado com a nossa respiração. Toco-lhe a face novamente, observando, delineando os contornos de sua boca, ameaçadoramente próxima da minha. Mas não, não quero que sinta o gosto do meus lábios agora, antes quero deleitar-me um pouco mais. Puni-lo. Afinal, se ele se recusa a cumprir as ordens de sua rainha à vista de todos, quero saber se o fará também quando está sozinho com ela. Como se soubesse o que pretendo ele prende a respiração, ansiosamente, aguardando, ansiando pelo que irei fazer em seguida. Continuo a contornar sua face, passando dos lábios aos cabelos fartos, numa carícia velada. Posso sentir que tenho poder sobre ele, mesmo ele querendo acreditar que não, mesmo contrariando minhas ordens reais frequentemente.
_ Então meu súdito indomável, qual deveria ser a sua punição por seu comportamento inaceitável está manhã? - digo, franzindo ligeiramente os lábios, num sorriso perverso.
_Desejo ser punido da forma como você desejar, pode me deleitar com sua criatividade cruel - responde ele, sem perder a compostura, com um leve traço de deboche. Devo admitir que a admiração cresce nesse momento, em nenhum instante sua voz lhe traiu, mas infelizmente seu corpo todo o faz, pois está retesado, carregado de desejo evidente.
_Sendo assim, irei escolher com sabedoria - digo, e não posso evitar um sorriso.
Estou preparada para o que for preciso, sei que ele me odeia, mas também me deseja na mesma intensidade, seus olhos o traem, a pupila continua dilatada de lascívia.
Começo então a me despir lentamente, estou envolta em um robe de seda fino, suave demais para me proteger do frio, mas efetivo para cobrir meu corpo. Ele me observa cautelosamente, o ritmo da respiração aumentando em expectativa crescente. Ao finalizar meu pequeno espetáculo ele me olha com adoração, quase que hipnotizado. Ele desliza seus olhos por minhas curvas voluptuosas me devorando por completo, se demorando nos meus seios rígidos apenas semi-cobertos por meus cabelos. Escolhi não usar nada esta noite, já que quando estou ricamente vestida não produzo o menor efeito na sua obediência, imaginei que o contrário seria diferente.
_Minha senhora - ele diz, a respiração entrecortada.
Removo as cobertas silenciosamente, a única peça restante entre nós. Ele já está preparado, pronto para mim, seu membro rígido, delatando a fome crua, o fervor da sua vontade. Me aproximo, estou tão desconcertada quanto ele, o coração batendo furiosamente no peito, mas me recuso a admitir, pois sou orgulhosa demais. Passeio os dedos por seu corpo, traçando seu abdômen calmamente, me deleitando. Ele parece desesperado, sei que está ansiando por isso, sei que deseja que eu finalize rapidamente seu martírio, dando-lhe tudo que deseja. Me demoro nas carícias, de propósito, fazendo pequenos círculos em seu corpo, suavemente. Como se não suportasse mais meu pequeno jogo de poder, ele me puxa para seu colo e inicia uma série de beijos fervorosos por todo meu corpo.
_Minha senhora - fala ele mais uma vez - Me perdoe, mas já aguentei sua punição por tempo suficiente, agora permita-me retribuir na mesma moeda.
Seus olhos brilham na penumbra do quarto e me olham com ferocidade enquanto nossos corpos se fundem, num mar de braços, pernas, dentes e línguas.
_Eu te odeio - diz ele baixinho, roçando o nariz no lóbulo da minha orelha - te odeio profundamente, te odeio tanto que não consigo parar de pensar em você, minha rainha.  
Ele me puxa mais para próximo de seu peito, me aninhando entre seus braços.
_Não deveria estar aqui, milady, não deveria ter me provocado, agora não vou mais saber como parar.
_Então não pare - respondo.
_Preciso parar - retruca ele, os olhos apavorados pelo mero pensamento - Cavaleiros insolentes não se tornam Reis.



sábado, 8 de setembro de 2018

Nando

Quando eu era menino adorava correr pelo pomar do pequeno sítio que pertencia à família. Que delícia que era correr atrás dos passarinhos, vê-los bater asas para longe de mim, assustados. Vovó sempre dizia que era meio peralta, um garoto esperto, porém travesso. Me deleitava subindo nas árvores da vivenda adjacente e roubando-lhe as frutas que nasciam em sua propriedade. A verdade é que no quintal de minha casa cresciam também em abundância os mesmos frutos, mas moleque que era, pensava que tais iguarias eram mais suculentas quando furtadas, pois em seu sabor mesclava-se ao gosto agridoce do perigo de ser apanhado em plena estripulia. Compadre Josias, o vizinho, estava sempre a reclamar de minhas diabruras à minha vozinha, Dona Rosália.
— Rosa, querida, é preciso punir este fedelho! Trata-se do Tinhoso em pessoa esse daí — dizia apontando para mim — nunca vi pirralho mais perverso!
Ao que minha velha replicava:
— Josias, meu caro, é apenas uma criança, logo logo toma jeito! Vai dizer que você também não era assim nesta tenra idade? Olha, Nando, prometa a ele que não vai fazer outra vez, ouviu?
— Prometo, prometo — jurava-lhe apressado. Como podia ela duvidar de uma expressão tão angelical como a minha? Era o próprio querubim em pessoa mirando-lhe com olhar de candura. 
O compadre me observava desconfiado, afinal não era a primeira vez que isto acontecia, mas vozinha Rosália lhe dizia, com seu olhar mais benevolente e compassivo:
— Não está vendo que ele se arrependeu, Josias? É um bom menino, afinal.
Eu passava dois dias agindo como a mais imaculada das criaturas, assumia um semblante puríssimo, me desculpava com o Compadre mil vezes e no terceiro dia já estava novamente praticando traquinagem.
— Ai, Rosa! Este menino é impossível! — Resmungava Josias, contrariado. 
Ao que vovó contestava veementemente:
— É apenas a idade, Compadre. Será um garoto de bem, já verás. 
Quando não estava aprontando, minha atividade preferida era brincar no velho balanço de pneu que meu Vôzinho havia confeccionado, antes de partir. Amava embalar-me naquele vaivém gostoso, quando o vento soprava em meus cabelos, arrepiando-os levemente. Era mesmo um regozijo aquela oscilação acelerada. O balanço ia e vinha, vinha e ia. Em uma dessas indas e vindas, minha Vó também se foi. Não tem mais Nando, somente Fernando e tudo aquilo da minha infância agora é saudade. Apenas um sopro em meus cabelos arrepiados pelo movimento do antigo pneu pendurado em uma árvore num pomar pequenino em algum lugar.



“— Será que a gente não vai ganhar nada, nada, de Papai Noel? 
— Acho que não.
— Diga sério, você acha que eu sou tão ruim, tão malvado como todo mundo diz? 
— Malvado, malvado, não. O que acontece é que você tem o diabo no sangue. 
— Quando chega o Natal eu queria tanto não ter! Eu gostava tanto que antes de morrer, uma vez na vida, nascesse o Menino Jesus em vez do Menino Diabo, pra mim.”
(Meu Pé de Laranja Lima - José Mauro de Vasconcelos)

sábado, 12 de maio de 2018

Metalinguagem

Era madrugada. Naquela noite, em especial, um vento gélido soprava obstinadamente nas paredes de um antigo palacete. As janelas rangiam, estremecendo a cada poderosa rajada de ar. Na cidade, toda a luminosidade esvaíra-se, uma escuridão profunda havia se apoderado do povoado. A única exceção era uma claridade mortiça, vinda do interior do grande casarão, onde um homem lia um livro. A trama era envolvente. A narrativa se passava em um pequeno vilarejo, no qual vivia um casal. O marido era endinheirado, as terras em que viviam eram, em sua maioria, propriedades dele. A mulher, por outro lado, havia nascido desprovida de riquezas e se aproveitara da condição do varão, ludibriando-o, a ponto de fazê-lo acreditar que o amava até, por fim, conseguir seu objetivo: casar-se com o companheiro.
Após a celebração do matrimônio, a moça começou a vivenciar uma vida dupla. Quando o esposo encontrava-se em casa era a mais afetuosa das criaturas, enchia-o de carinhos e regalias. Assim que o infeliz viajava a negócios, porém, a história era bastante distinta, pois a jovem o traia com um namorado que mantivera mesmo após o casamento, a quem verdadeiramente amava. Não bastasse tamanha infidelidade, os amantes costumavam planejar seu futuro, idealizando o dia em que não haveria mais um cônjuge a quem a garota tivesse que prestar contas, imaginando que ambos seriam prósperos e felizes com o dinheiro do marido defunto, pois cedo ou tarde ele deveria perecer – Nesse ponto, o homem fez uma pausa na narrativa, para bebericar seu vinho branco, que deixara ao seu lado, na mesinha de cabeceira. Após apreciar o suave sabor adocicado da bebida, ele retomou sua leitura.
Algumas páginas do livro se passaram, e com elas transcorreram alguns meses na história, a donzela já não suportava mais a vida de mentiras que levava com o marido. Decidiu, então, buscar seu amante e transformar seus devaneios para enriquecer em realidade. Planejaram detalhadamente o que fariam e, após esquematizarem e repassarem mentalmente toda a ação que iriam executar se encaminharam para o seu propósito.
Os amantes caminharam em silêncio, lado a lado.  O ar estava gélido e todas as luzes da cidade já estavam apagadas. Chegaram ao seu destino. Pé-ante-pé, entraram pelos fundos. Andaram mais um pouco. Silêncio. A casa está completamente escura, a menos por uma claridade frouxa, vinda da biblioteca.
A leitura do homem é interrompida abruptamente, ele escuta um ruído. Quem poderia ser a esta hora da noite? Temeroso, ele se levanta bruscamente da poltrona onde estava sentado. Dois vultos se movem rapidamente em sua direção. O moço tenta, em vão, gritar por socorro. Já é tarde, os amantes se aproximam e o apunhalam, com golpes certeiros em seu coração. Satisfeitos, os namorados deixam o recinto. Dentro da biblioteca, sangue escorre abundantemente pelas páginas de um livro, ao lado de um cadáver.


domingo, 17 de dezembro de 2017

O gato

No canto sinistro, sombrio e tenebroso,
Um gato observa os transeuntes
Com seu olhar amistoso, 
Que faz essa gente andando apressada?
Pensa consigo o felino na calçada,
O pequeno bichano se encolhe acanhado, 
Está fraco, abatido, lânguido e debilitado, 
Escuta os ressonos de seu miserável estômago,
Quando petiscara pela última vez?
Não se acordava
O felídeo se põe a rondar, 
Se acerca dos passantes e começa a ronronar,
Muitos o desprezam, rejeitam e o evitam, 
Mas o gato persiste em sua infindável busca por comida,
Até que finalmente, depois de muita insistência, 
Uma menina se compadece do franzino bichinho,
Pega-o no colo e o leva para casa,
O pequerrucho está faminto, 
Enche logo a boquinha de ração, 
A garota ri, deliciada com seus trejeitos, 
Que gatinho adorável, não parece ter defeitos,
Até hoje, o bichano e a mocinha vivem juntos em consonância,
Pois a garota resgatou o felino e o pequenino restaurou sua infância.


"Gatos amam mais as pessoas do que elas permitiriam. Mas eles têm sabedoria suficiente para manter isso em segredo." 
(Mary Wilkins)

quinta-feira, 10 de dezembro de 2015

Menina

Quando criança, costumava correr pelas ruas, apressada, cabelos desgrenhados, oscilando ao sabor do vento, vestido sempre sujo, levando consigo as marcas do asfalto em que se sentava para participar de brincadeiras infantis. Adorava passar horas balançando-se no parque. Como era agradável a infância! As tardes passavam rapidamente, e, com elas, também transcorriam as primaveras. Foi em um desses dias de abril, enquanto as flores desabrochavam, que floresceu a menina. Seu corpo começou a mostrar sinais de mudanças, os seios, antes diminutos e pueris, agora já despontavam sob sua camisa, tímidos. As longas mechas, outrora bagunçadas, encontravam-se penteadas com esmero. Aposentou as bonecas, que em sua meninice haviam sido suas fieis companheiras. Olhou-se no espelho, a boca, que no passado não continha nenhum traço de maquiagem, exibia um bonito tom carmesim. Satisfeita com o que viu, saiu pela porta, sorridente, pelas mesmas ruelas que rotineiramente percorrera em sua meninez.


"Oh! que saudades que tenho
Da aurora da minha vida,
Da minha infância querida
Que os anos não trazem mais!
Que amor, que sonhos, que flores,
Naquelas tardes fagueiras
À sombra das bananeiras,
Debaixo dos laranjais!
Como são belos os dias
Do despontar da existência!
— Respira a alma inocência
Como perfumes a flor;
O mar é — lago sereno,
O céu — um manto azulado,
O mundo — um sonho dourado,
A vida — um hino d'amor!
Que aurora, que sol, que vida,
Que noites de melodia
Naquela doce alegria,
Naquele ingênuo folgar!
O céu bordado d'estrelas,
A terra de aromas cheia
As ondas beijando a areia
E a lua beijando o mar!
Oh! dias da minha infância!
Oh! meu céu de primavera!
Que doce a vida não era
Nessa risonha manhã!"
(Trecho de "Meus oito anos" - Casimiro de Abreu) 

segunda-feira, 24 de agosto de 2015

Crônica do amor redescoberto

Acredito que te amo. Nunca havia visto olhos que sorriem, mas os teus o fazem graciosamente. Duas estrelas reluzentes, em uma explosão de alegria inebriante. Adoro quando me abraças, assim, de pertinho, com o rosto colado no meu. Gosto, gosto mesmo, de gostar de ti. O garoto apaixonado por tons de azul, mas que enxerga a vida em pinceladas coloridas. O jovem com alma de adulto, o adulto que sonha como jovem. Deleito-me, infinitamente, observando-te. O modo como mordes a boca, travesso, de certa forma me parece um tanto pitoresco. Tua mania de enrolar o cabelo nervosamente é cativante. Tuas mãos, eterno paradoxo, tão fortes e tão delicadas ao mesmo tempo. Creio, creio mesmo que te amo. E talvez esteja correndo sério risco de te amar...




....enquanto eu respirar. 


quinta-feira, 25 de junho de 2015

João

Foi assim que lhe chamaram ao nascer,
Registro não tinha. Identidade, pra quê?
Filho da nação, homem do povo,
Cria da miséria, prole da fome,

Pela matina levantava, punha-se cedo a trabalhar,
Quando menos se esperava, lá vinha João
Sorriso na boca, enxada na mão,
Cantarolava baixinho e a São Pedro rogava,
Caridoso santinho, poupa-me dessa vida desgraçada,

Pela noite, João se recolhia,
No casebre apertado, dormitava, sem jamais descansar,
E no dia seguinte, levantava mais uma vez João,
Sorriso na boca, enxada na mão,

O sol fustigava sua face abatida,
João, meio tonto, sentou-se para repousar,
Acordou, atônito, com o cenário à sua frente,
São Pedro sorria, e lhe disse zombeteiro,
João, levanta-te daí, o céu hoje está em festa,
Ganhamos um novo membro e tu ganhaste um sobrenome,
Qual? - João pergunta, ansioso,
Ninguém - responde-lhe, prontamente, São Pedro, amistoso,

Esse foi um breve relato de mais um João Ninguém,
Pobre, carente, desafortunado,
Morreu, sem ter nenhum vintém,
Amanhã a história se repete com algum outro João,
Marginalizado pela sociedade, de enxada na mão,
Porque, afinal de contas, João tem muitos irmãos,
Todos escravos da fome, crias da miséria, homens do povo,
A pátria é João.


"As alpercatas dele estavam gastas nos saltos, e a embira tinha-lhe aberto entre os dedos rachaduras muito dolorosas. Os calcanhares, duros como cascos, gretavam-se e sangravam. Num cotovelo do caminho avistou um canto de cerca, encheu-o a esperança de achar comida, sentiu desejo de cantar. A voz saiu-lhe rouca, medonha. Calou-se para não estragar força."
(Vidas Secas- Graciliano Ramos)

sábado, 6 de junho de 2015

Cotidiano

Hoje eu te vi acordando pela primeira vez ao meu lado. Teu sono estava estampado em tua face marcada pelo travesseiro. Sorriste, com os cabelos desgrenhados, após um longo bocejo. Pensei comigo como eu era sortudo em ter-te junto a mim. Levantaste e pude ver teu pijama infantil folgado, desgastado pelo tempo. Disse-te como estavas linda aquela manhã e, então, me olhaste com cara de escárnio chamando-me de mentiroso. Em vão tentei argumentar que te dizia a verdade, mas teu olhar me repreendia silencioso. Peguei-te no colo e te beijei preguiçosamente, de um jeito que te fez rir zombeteira. Deitaste em meu ombro, transparecendo genuína empolgação enquanto tagarelavas banalidades e eu observava, deliciado, teu semblante de pura felicidade, sem prestar atenção no conteúdo da conversa – pausaste no meio da frase, te apercebeste da minha aparente desatenção – me olhaste acusadoramente, veneno faiscando em tua íris, fizeste biquinho, aborrecida. Deitaste na cama, como uma criança birrenta. Abracei-te suavemente e te fiz cócegas por todo o corpo. Riste, com deleite. Já não estavas descontente. O despertador tocou, avisando que já era hora de ir trabalhar, e, a contragosto, nos levantamos para começar o dia.
"Todo dia ela faz tudo sempre igual
Me sacode às seis horas da manhã
Me sorri um sorriso pontual
E me beija com a boca de hortelã"
(Cotidiano - Chico Buarque)

sexta-feira, 5 de junho de 2015

Anjo sem asas

Vem aqui, do meu lado, dividir sorrisos repartidos entre muitos lençóis. Vem cá, que eu quero te pegar pela cintura e te mostrar que comigo pode ser diferente. Conheço-te há um tempo, mas para mim ainda não é o suficiente. Quero conhecer-te novamente todos os dias, até o fim dessa vida. Você pode duvidar de mim. Na verdade você tem todo o direito estar receosa, afinal teu coração já foi muito machucado, mas te prometo, garota, que comigo ele está seguro. Não te peço que acredites de imediato, podes duvidar o tempo que for necessário, eu espero, sou paciente. Vou te mostrar, devagarzinho, que sou eu quem pode preencher teus dias vazios. Posso estar contigo do outro lado do edredom. Não precisas estar sozinha, pequena, estarei aqui pra você, sempre. Não entendo nada sobre teus livros, teu mundo de fantasia, ou a utopia que criaste em tua cabeça, mas te prometo que por você eu tento. Tento entender essa tua cabecinha tão cheia de ideias e tão distinta da minha. Eu sei que somos muito diferentes, mas isso não precisa ser um problema, pode ser uma nova oportunidade. Nossos universos podem ser completamente diversos, mas nós podemos criar um novo, só nosso. Sei que estás assustada, querida, mas deita aqui no meu ombro que tudo vai passar. Todas as coisas passam amor, os segundos, os minutos, as horas, tudo se cura com o tempo. E hoje é tempo de recomeço pra você e pra mim.


"Eu vim pra ser seu anjo
Pra lhe proteger
Do céu de onde eu desci
Eu vim cuidar de você"
(Um anjo muito especial - Roupa Nova)

sábado, 25 de abril de 2015

Pseudo-vida

Ele olhou-a, com aqueles grandes olhos risonhos, cor de avelã. Ela se perdeu em seu olhar, absorta com tamanha doçura. Tocou-lhe a face cansada, observou suas rugas de preocupação aparentes, caminhou por seu rosto, sentindo, com os dedos, os vincos que os anos haviam esculpido em sua fronte. Apesar de tudo, ele ainda era o homem mais bonito que ela havia visto. Não por sua aparência, mas havia algo em sua maneira, em seu jeito, que o tornava diferente de todos os outros que já havia conhecido. E ela ansiava, cada vez mais, torná-lo feliz. Talvez por isso inquietava-se tanto. Queria fazê-lo sentir-se completo a todo custo, não importando o que tivesse que fazer para alcançar isso. Afinal – pensava ela – os fins justificam os meios. E, com essa visão maquiavélica, de certa forma grotesca, vivia sem viver, um dia de cada vez. Até que por fim, ele cansou-se dessa realidade burlesca que ambos dividiam. E, com uma única lágrima partiu. Ela, então, abaixou-se outra vez, para juntar, aos poucos, os caquinhos de seu coração esfacelado.

 

"Em algum lugar, em toda aquela neve, ela via seu coração partido em dois pedaços".
(A menina que roubava livros - Mark Zusak)