Quem sou eu?

Minha foto
Recife, Pernambuco
Poderia dizer que vivo de sonhos, mas creio que são eles que vivem em mim. Arriscaria classificar-me como quixotesca, a cada dia mato meus gigantes para, na manhã seguinte, aperceber-me de que eles não passavam de meros moinhos. Acredito firmemente que as melhores pessoas tem um quê de loucura, manter-se fixo na realidade é enfadonho. O ideal mesmo é tirar os pés do chão e, se possível, aprender a voar.

sábado, 8 de setembro de 2018

Nando

Quando eu era menino adorava correr pelo pomar do pequeno sítio que pertencia à família. Que delícia que era correr atrás dos passarinhos, vê-los bater asas para longe de mim, assustados. Vovó sempre dizia que era meio peralta, um garoto esperto, porém travesso. Me deleitava subindo nas árvores da vivenda adjacente e roubando-lhe as frutas que nasciam em sua propriedade. A verdade é que no quintal de minha casa cresciam também em abundância os mesmos frutos, mas moleque que era, pensava que tais iguarias eram mais suculentas quando furtadas, pois em seu sabor mesclava-se ao gosto agridoce do perigo de ser apanhado em plena estripulia. Compadre Josias, o vizinho, estava sempre a reclamar de minhas diabruras à minha vozinha, Dona Rosália.
— Rosa, querida, é preciso punir este fedelho! Trata-se do Tinhoso em pessoa esse daí — dizia apontando para mim — nunca vi pirralho mais perverso!
Ao que minha velha replicava:
— Josias, meu caro, é apenas uma criança, logo logo toma jeito! Vai dizer que você também não era assim nesta tenra idade? Olha, Nando, prometa a ele que não vai fazer outra vez, ouviu?
— Prometo, prometo — jurava-lhe apressado. Como podia ela duvidar de uma expressão tão angelical como a minha? Era o próprio querubim em pessoa mirando-lhe com olhar de candura. 
O compadre me observava desconfiado, afinal não era a primeira vez que isto acontecia, mas vozinha Rosália lhe dizia, com seu olhar mais benevolente e compassivo:
— Não está vendo que ele se arrependeu, Josias? É um bom menino, afinal.
Eu passava dois dias agindo como a mais imaculada das criaturas, assumia um semblante puríssimo, me desculpava com o Compadre mil vezes e no terceiro dia já estava novamente praticando traquinagem.
— Ai, Rosa! Este menino é impossível! — Resmungava Josias, contrariado. 
Ao que vovó contestava veementemente:
— É apenas a idade, Compadre. Será um garoto de bem, já verás. 
Quando não estava aprontando, minha atividade preferida era brincar no velho balanço de pneu que meu Vôzinho havia confeccionado, antes de partir. Amava embalar-me naquele vaivém gostoso, quando o vento soprava em meus cabelos, arrepiando-os levemente. Era mesmo um regozijo aquela oscilação acelerada. O balanço ia e vinha, vinha e ia. Em uma dessas indas e vindas, minha Vó também se foi. Não tem mais Nando, somente Fernando e tudo aquilo da minha infância agora é saudade. Apenas um sopro em meus cabelos arrepiados pelo movimento do antigo pneu pendurado em uma árvore num pomar pequenino em algum lugar.



“— Será que a gente não vai ganhar nada, nada, de Papai Noel? 
— Acho que não.
— Diga sério, você acha que eu sou tão ruim, tão malvado como todo mundo diz? 
— Malvado, malvado, não. O que acontece é que você tem o diabo no sangue. 
— Quando chega o Natal eu queria tanto não ter! Eu gostava tanto que antes de morrer, uma vez na vida, nascesse o Menino Jesus em vez do Menino Diabo, pra mim.”
(Meu Pé de Laranja Lima - José Mauro de Vasconcelos)

sábado, 12 de maio de 2018

Metalinguagem

Era madrugada. Naquela noite, em especial, um vento gélido soprava obstinadamente nas paredes de um antigo palacete. As janelas rangiam, estremecendo a cada poderosa rajada de ar. Na cidade, toda a luminosidade esvaíra-se, uma escuridão profunda havia se apoderado do povoado. A única exceção era uma claridade mortiça, vinda do interior do grande casarão, onde um homem lia um livro. A trama era envolvente. A narrativa se passava em um pequeno vilarejo, no qual vivia um casal. O marido era endinheirado, as terras em que viviam eram, em sua maioria, propriedades dele. A mulher, por outro lado, havia nascido desprovida de riquezas e se aproveitara da condição do varão, ludibriando-o, a ponto de fazê-lo acreditar que o amava até, por fim, conseguir seu objetivo: casar-se com o companheiro.
Após a celebração do matrimônio, a moça começou a vivenciar uma vida dupla. Quando o esposo encontrava-se em casa era a mais afetuosa das criaturas, enchia-o de carinhos e regalias. Assim que o infeliz viajava a negócios, porém, a história era bastante distinta, pois a jovem o traia com um namorado que mantivera mesmo após o casamento, a quem verdadeiramente amava. Não bastasse tamanha infidelidade, os amantes costumavam planejar seu futuro, idealizando o dia em que não haveria mais um cônjuge a quem a garota tivesse que prestar contas, imaginando que ambos seriam prósperos e felizes com o dinheiro do marido defunto, pois cedo ou tarde ele deveria perecer – Nesse ponto, o homem fez uma pausa na narrativa, para bebericar seu vinho branco, que deixara ao seu lado, na mesinha de cabeceira. Após apreciar o suave sabor adocicado da bebida, ele retomou sua leitura.
Algumas páginas do livro se passaram, e com elas transcorreram alguns meses na história, a donzela já não suportava mais a vida de mentiras que levava com o marido. Decidiu, então, buscar seu amante e transformar seus devaneios para enriquecer em realidade. Planejaram detalhadamente o que fariam e, após esquematizarem e repassarem mentalmente toda a ação que iriam executar se encaminharam para o seu propósito.
Os amantes caminharam em silêncio, lado a lado.  O ar estava gélido e todas as luzes da cidade já estavam apagadas. Chegaram ao seu destino. Pé-ante-pé, entraram pelos fundos. Andaram mais um pouco. Silêncio. A casa está completamente escura, a menos por uma claridade frouxa, vinda da biblioteca.
A leitura do homem é interrompida abruptamente, ele escuta um ruído. Quem poderia ser a esta hora da noite? Temeroso, ele se levanta bruscamente da poltrona onde estava sentado. Dois vultos se movem rapidamente em sua direção. O moço tenta, em vão, gritar por socorro. Já é tarde, os amantes se aproximam e o apunhalam, com golpes certeiros em seu coração. Satisfeitos, os namorados deixam o recinto. Dentro da biblioteca, sangue escorre abundantemente pelas páginas de um livro, ao lado de um cadáver.